quarta-feira, 24 de março de 2010

Abominável encantamento!






(Ceronha Pontes em foto de Velma Zehd)



“O que se sente? O que se vê? Coisas maravilhosas, não é? Espetáculos extraordinários? É muito bonito? Muito terrível? Muito perigoso?”

(O poema do haxixe, Charles Baudelaire)



Atiro-me numa incontestavelmente NOVA aventura, ainda que com ares de cartaz antigo. Inspirado nos Paraísos Artificiais, de Charles Baudelaire e nas Confissões de Um Comedor de Ópio, de Thomas de Quincey (a experiência deste serviu de inspiração para aquele), meu breve solo Um Comedor de Ópio volta à cena. Desta vez “reencarna” em palcos pernambucanos, dentro do Curta Coletivo, projeto do Coletivo Angu de Teatro, grupo que boníssima acolhida me deu no Recife.

Recuperando motivações, reelaborando a cena, potencializando o gestual, a musicalidade, buscando incansavelmente o frescor. Exercício que perpassa emoções diversas. Oscilo. Vacilo. Num mesmo ensaio tanto me dou por segura quanto por vencida. Não me economizo nas alegrias e inevitáveis dores deste nosso ofício. Ao teatro, TUDO! É feito amar.

Poeta inglês que viveu entre 1785 e 1859, De Quincey me acompanha há dez anos. Sua obra (e de Baudelaire), sua história, vício e ternura, suas agruras, ironia, inteligência, sabedoria, sua força e grande sensibilidade me ensinaram muito. Com ele (ou eles) vou acrescentando ao meu viver e "teatrar". E tudo começou quando, identificada com o corajoso e contundente discurso de Charles, isento de qualquer moralismo ao tratar do consumo de substâncias entorpecentes, me encantei especialmente com a parte dedicada ao ópio, por revelar impressionante conflito de genial poeta (Quincey) que experimenta, pela ação do ópio, a expansão de sua mente brilhante em detrimento de seu corpo, até chegar a um ponto em que um já não serve de morada ou expressão para o outro.

“Horrível situação! Ter a mente fervilhando de idéias e não poder mais atravessar a ponte que separa os campos imaginários do devaneio, das colheitas positivas da ação! Se aquele que estiver me lendo agora conheceu as necessidades da produção, eu não preciso descrever o desespero de um espírito nobre, clarividente, hábil, em luta contra essa danação de caráter tão particular. Abominável encantamento!” (Charles Baudelaire)

O comovente relato de Quincey (opiômano assumido) ilustrando o pensamento de Charles resultou irresistível para esta alma curiosa da sede humana por extinguir a dor e alcançar a felicidade plena. Além disso, o interesse estético movido pela beleza da composição de Charles e Thomas. Como construir UM CORPO QUE NÃO COMPORTA A MENTE? Isto muito atiçava a atriz que vos fala e que depois de dez anos ainda se perturba com o mote. Com exatos dez quilos a mais dentro do mesmíssimo surrado figurino e alguma paciência adquirida, me aplico nesse laboratório “antigo” à procura do que ainda não sei, dos signos que não consegui desvendar ou traduzir, reescrevendo mais uma vez em meu "corpo-cavalo" este poema chamado Thomas De Quincey.

A adaptação do texto “invade” também As Flores do Mal, de Baudelaire, bem como as suas impressões sobre a atuação do haxixe e do vinho no espírito humano, tratando ainda dos Paraísos Artificiais.

Oh, mas não esperem de Charles, Thomas e nem desta abusada que ousa intimidade com eles, acusar imediatamente o ópio. Antes ele encontra em NÓS (nem eu me agüento de tanta pretensão), DEFESA APAIXONADA. Acredito inteiramente que uma discussão respeitável e frutífera acerca de substâncias desta natureza, não pode ignorar-lhes os “benefícios”. A imensa alegria que provoca e o poder que tem de tornar infinitas as possibilidades de criação e de elevar tão alta a capacidade de sonhar, não serão combatidas com a ignorância e melindres de ordem moralista. E fique claro feito água mineral, não estamos entrando aqui (pelo menos não ainda) na atual e complexa questão do narcotráfico. Nos prendemos, e que isto nos acrescente algo de bom, ao drama de De Quincey ao admitir-se inerte, tiranizado pela alegria provocada pela substância que lhe aplacou a dor no estômago e o rendeu pela sucessão de alívios e fertilidade que proporcionou ao seu espírito. Tratamos de seu esforço sobre-humano para livrar-se de tão delicioso quanto perigoso império.

E o que diz a seguir o Baudelaire sobre a sagrada bebida, bem se aplica ao doce veneno da papoula.

“O vinho é semelhante ao homem: nunca saberemos até que ponto podemos prezá-lo ou desprezá-lo, amá-lo e odiá-lo, nem de quantas ações sublimes ou de delitos monstruosos ele é capaz. Não sejamos pois mais cruéis com ele que com nós mesmos, e tratemo-lo como nosso igual.” (Charles Baudelaire)

Evoé!

CERONHA PONTES

Recife-PE, 24 de março de 2010.

4 comentários:

  1. Se joga minha linda, seu blog está ótimo. Adorei conhecer, Tenho passeado por aqui sempre.
    Beijos

    André Brasileiro

    ResponderExcluir
  2. Brasileiríssimo! Bons ventos o tragam sempre. Meus beijos.

    ResponderExcluir
  3. Eu vi nascer esse comedor... já tomamos até vinho juntos... Saudades!

    ResponderExcluir
  4. E a vida longa desta minha cria muito se deve a ti, Rogério. Tu bem sabes o quanto te devo e, mais ainda, o bem que te quero.Posto o figurino, feita a maquiagem, a pergunta de sempre: "Rog, tou bem?" Saberia que sim se vc respondesse que eu estava parecendo um rapazinho. Te amo!

    ResponderExcluir